Em artigo à Carta Capital, Fernando Filgueiras argumenta que o julgamento da Ação penal 470 pelo STF está mais carregado de moralismo do que de jurisprudência:
""PUBLICITY IS justly commended as a remedy for social and industrial disea-ses. Sunlight is said to be the best of disinfectants; electric light the most efficient policeman", esplanou o juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, Louis Brandeis, em 1913. Em uma tradução livre: "Publicidade é justamente o remédio recomendado para doenças sociais e industriais. A luz do sol é o melhor dos desinfetantes. A luz elétrica, o policial mais eficiente". No contexto da época, o debate girava em torno da aplicação do princípio da publicidade na administração pública, tendo em vista a participação de grandes corporações no orçamento público norte-americano. Atribui-se a Brandeis, magistrado da Suprema Corte, a formulação do conceito de transparência.
Naquela ocasião, a discussão sobre os monopólios na área de transporte público em Boston e as falcatruas praticadas em seguros levaram a diversos debates na Suprema Corte. A intervenção de Brandeis ressaltava a importância de tornar os assuntos públicos nas democracias e na ideia de transparência como um remédio importante para a política e para o bom andamento da gestão pública.
A transparência entrou para o léxico político como um valor inconteste. Todos a defendem e a apontam como o remédio inevitável para a corrupção das instituições. Entenda-se corrupção, nesse texto, não apenas como os esquemas privados de malversação de recursos públicos, mas também como o processo de degeneração das instituições, fazendo com que elas não funcionem com base no interesse público. A transparência, por princípio, desinfeta a política e assegura ao cidadão maior volume de informações, permitindo-lhe cobrar seus representantes e conhecer os meandros dos processos decisórios e de implementação de políticas públicas.
As falcatruas dos seguros e do monopólio do transporte público em Boston do início do século XX alimentaram na Suprema Corte uma discussão sobre a importância da transparência. Hoje, ao se analisar o Tribunal Constitucional brasileiro, percebe-se como a transparência pode ser uma virtude ambígua, se não contarmos com plena institucionalização das instituições democráticas.
A política brasileira tem sido acometida de um processo de judicialização. O processo de judicialização da política implica o fortalecimento do Poder Judiciário diante do Executivo e do Legislativo.
Um dos argumentos para tanto é que as instituições políticas, os governos, os Parlamentos e os partidos, em especial, estariam mergulhados em uma profunda corrupção da representação, o que leva ao empoderamento de instituições de caráter contramajoritário e dedicadas ao controle. Esse processo é comum nas democracias consolidadas e torna o Judiciário uma espécie de bastião da moralidade, cabendo a ele o papel de corrigir os rumos tomados pela representação política.
A judicialização é normal nas democracias. O Judiciário, especialmente as Cortes Constitucionais, são instituições políticas e a transparência de fato é um princípio importante da ordem democrática. Dentro da normalidade democrática, o Judiciário tem uma função política muito importante e a transparência pode, de fato, contribuir para a publicidade das ações de governos. Mas, se tomarmos o caso brasileiro, especialmente no que tange ao julgamento da Ação Penal 470, ou, simplesmente, do "mensalão", percebe-se que ambas, a judicialização e a transparência, têm sido sobrevalorizadas e podem acarretar em processos pouco democráticos. Das duas ordens de questões, fica o seguinte: em que medida o fortalecimento da transparência e o processo de judicialização da política ajudam a fortalecer a democracia no Brasil?
O julgamento do mensalão tem sido realizado sob os holofotes da grande mídia e tem suscitado um debate entre surdos. Nunca nenhum julgamento no Supremo Tribunal Federal foi tão transparente quanto este. E nunca uma Corte Constitucional esteve tão no centro da democracia sob o manto de salvadora da moralidade pública e dos bons costumes políticos.
Penso não se tratar de uma condição de exceção, como um dos lados do debate sobre o julgamento tem defendido. Mas, certamente, é um processo que pode acarretar riscos institucionais severos para a ordem democrática. Logo, ele pode vir a ser um julgamento histórico simplesmente pelo fato de o STF ter sucumbido à mídia e não por ter punido, sob a tutela das transmissões ao vivo das sessões do julgamento, os "mensaleiros".
No Brasil, a consolidação da democracia trouxe o Judiciário ao centro do debate político. Não apenas no caso do mensalão, mas, sobretudo, no seu papel de guardião da Constituição de 1988. Se associarmos a isso o fato de que as sessões de julgamento são transmitidas ao vivo pela tevê, firma-se um contexto em que uma instituição contramajoritária por definição sucumbe aos interesses de grandes grupos de mídia na conformação da opinião pública e crie uma sanha punitiva.
A posição do STF beira a irresponsabilidade, especialmente quando um de seus magistrados aponta para a não validade da aprovação de reformas importantes no Congresso, com o suposto auxílio da compra de votos de parlamentares. Se prevalecer essa jurisprudência, não haverá prudência alguma quanto ao interesse público. Retroceder o debate sobre a reforma da previdência provocaria um efeito nefasto nas contas públicas e um retrocesso democrático.
O STF deveria olhar para a experiência do juiz Brandeis e perceber que a transparência é, de fato, o melhor desinfetante. Mas também deveria notar que ela não implica uma sanha punitiva sem observar o contexto e o texto. E, mais ainda, sem observar a pouca transparência dos grupos privados de mídia. Se a transparência é o melhor desinfetante, a publicidade é o princípio. Isso está distante do puro moralismo. Nem exceção, nem julgamento histórico. O mensalão deveria ser um caso normal da vida democrática, cabendo a prevalência do império da lei e prudência com os fatos e com os desdobramentos para a democracia brasileira. Mais jurisprudência, menos moralismo."
Fernando Filgueiras é professor do Departamento de Ciência Política da Universidade Federal de
Minas Gerais e coordenador do Centro de Referência do Interesse
Público
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