quarta-feira, 17 de novembro de 2010

Projeção do Brasil, política externa e estratégia de desenvolvimento

O êxito que o Brasil teve em matéria de política externa, desde 2003, com a posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, se expressa hoje numa forte projeção do Brasil no mundo. Isso ocorreu essencialmente pelas grandes transformações que nós tivemos internamente porque não só elas foram inéditas no caso brasileiro, mas, de certa maneira, foram também inéditas, ou quase inéditas, no mundo. Essas reflexões foram feitas por Marco Aurélio Garcia, assessor da Presidência da República para Assuntos Internacionais, em entrevista ao Le Monde Diplomatique Brasil.

Ele observou que um dos principais desafios nestes oito anos do governo do PT e aliados foi crescer com distribuição de renda, estabilidade macroeconômica, redução da vulnerabilidade externa e com democracia. "Por outro lado, incorporamos o contexto mundial como um elemento essencial para o país. A política externa do Brasil não pode ser simplesmente entendida como um mecanismo de projeção do Brasil no mundo, ela é um elemento substancial do próprio projeto nacional brasileiro. Nós não podemos nos pensar fora do mundo, fora da região", disse.

Marco Aurélio Garcia observa que o mundo vive um intenso processo de transição, cujo desfecho ainda não é previsível, a julgar pelas transformações que vêm ocorrendo desde os anos 1990. "Fortalece-se a perspectiva de que devemos construir um mundo dominado por valores multilaterais", comentou.

O Governo Lula apostou na integração regional. "Hoje, a América do Sul ocupa um lugar privilegiado no mundo e talvez ela própria não tenha consciência perfeita disso.", observou o assessor da Presidência. "Temos as maiores reservas de energia do mundo: petróleo, gás, carvão, potencial hidroelétrico, biocombustíveis, energia nuclear, eólica, solar etc. E o mundo demandará cada vez mais energia. Temos grandes recursos de alimentação, e recursos que não são mais resultantes daquele tipo de produção primária, exportadora, do passado. Nossa agricultura tem alta produtividade, que não existiria sem pesquisa científica, tecnológica etc. Temos grandes reservas de minério, que obviamente serão importantes para qualquer etapa da humanidade, mas particularmente para essa onde está havendo certas zonas de crescimento industrial muito forte. E nós já temos polos industriais significativos, alguns de ponta. É claro que vamos ter que enfatizar muito mais políticas industriais locais, nacionais e regionais", completou Marco Aurélio Garcia.

Clique aqui para ler a íntegra da entrevista.

O Brasil do Governo Lula, um novo padrão de mudança social

"Do final do Plano de Metas de Juscelino Kubitschek (1956-61) ao segundo governo Lula (2006-10), o Brasil conviveu com três distintos padrões de mudanças sociais, identificados por um conjunto amplo e profundo de transformações econômicas (estruturas produtiva, ocupacional e distributiva) e de reorientação nas políticas públicas (Estado de bem-estar social).

Ao se considerar a evolução de indicadores-sínteses da realidade brasileira, como os da renda per capita nacional e da desigualdade na repartição da renda pessoal, nota-se o ineditismo do momento atual, de conteúdo não esboçado plenamente no primeiro e no segundo padrões de mudanças sociais.

Entre as décadas de 1960 e 1970, o Brasil apresentou o primeiro padrão de mudança social, caracterizado pela forte expansão nacional da renda per capita, acompanhada de significativo aumento no grau de desigualdade na repartição da renda pessoal, responsável por brutal diferenciação no movimento de mobilidade social.

Na toada do projeto de industrialização nacional, sem planejamento e sem reforma agrária, houve excessiva transição populacional do campo para a cidade. Além do excedente de mão de obra gerado nos grandes centros urbanos, o valor real do salário mínimo registrou queda média anual de 1,6%, diante da elevação média de 4,6% ao ano do PIB per capita, entre 1960 e 1980.

Mesmo com a presença da informalidade, a cada ano a ocupação total aumentou 3,1% e a taxa nacional de pobreza decaiu 1,3%, enquanto a escolaridade dos brasileiros passou de 2,1 para 3,9 anos (3,1% de aumento anual) e o grau de desigualdade na renda pessoal cresceu 1%.

Em síntese, um contraste visível entre a rápida elevação da renda nacional por habitante e o forte aumento das iniquidades, especialmente na divisão dos frutos do crescimento econômico.

O segundo padrão de mudança social, ocorrido entre os anos de 1981 e 2003, foi demarcado pela estagnação na evolução da renda per capita e no grau de desigualdade na repartição da renda pessoal.

A vigência do regime de superinflação (até 1994) e de crises econômicas seguidas fez regredir a renda nacional em vários períodos (1981-83, 1990-92, 1998-99 e em 2002-03).

Sem a sustentação do crescimento da renda nacional per capita (variação de 0,2% ao ano), o grau de desigualdade praticamente não mudou (variação negativa de 0,1% ao ano), enquanto o desemprego cresceu fortemente (5,6% ao ano) e o valor real do salário mínimo foi reduzido 1,8% ao ano, em média.

Além disso, a cada ano a taxa de pobreza caiu apenas 0,8%, e a escolaridade foi ampliada somente em 2,1% (de 3,9 para 6,3 anos). Resumidamente, a interrupção da mobilidade social e das oportunidades econômicas.

Desde meados da década de 2000, percebem-se sinais de novo padrão de mudança social no país.

Esse terceiro padrão possui como características principais a combinação da expansão média anual da renda nacional per capita (de 2,9%) com a queda na desigualdade pessoal da renda (de 1,5%) desde 2004.

Simultaneamente, registra-se a redução média anual nas taxas nacionais de desemprego (5,2%) e de pobreza (4,8%), com forte elevação do salário mínimo (7,1%), da ocupação total (3,2%), sobretudo formal, e dos anos de escolaridade (aumento de 3,8%).

Em especial, o novo padrão de mudança social relaciona-se à opção atual pelo desenvolvimento da produção de bens e serviços em detrimento da financeirização da riqueza -como observado nos anos de vigência do segundo padrão de mudança social- e pela defesa do Estado de bem-estar social, ausente durante o primeiro padrão de mudança social."

Este artigo é de Marcio Pochmann, economista e presidente do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). O texto foi publicado originalmente na Folha de S. Paulo, edição de 17/11/2010)