sexta-feira, 30 de setembro de 2011

O papel do CNJ e os bandidos de toga : Intimidar os críticos é o ardil dos criticados

Em artigo publicado no jornal O Globo desta sexta-feira (30), o ex-deputado Paulo Delgado (PT-MG) critica o movimento de setores do Judiciário contra as medidas moralizadoras que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) vem tomando. Ele enaltece o papel da corregedorta nacional de Justiça, ministra Eliana Calmon, no processo de moralização do Judiciário. "A corregedora, com descortino põe-se do lado certo, e escolhe com sua atitude ajudar a sociedade a se aperfeiçoar". Leia, abaixo, a íntegra do artigo, intitulado "Bandidos de Toga".

"Quando a ministra Eliana Calmon, corregedora nacional de Justiça, alertou para a impunidade dos juízes e criticou o corporativismo dos que querem restringir o poder de fiscalização do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), foi direto ao alvo: “Acho que isto é o primeiro caminho para a impunidade da magistratura, que hoje está com gravíssimo problema de infiltração de bandidos que estão escondidos atrás da toga.” Imediatamente, a lógica da corporação se moveu irada e exigiu que ela apontasse os nomes.

Nem se deram conta que quem reage pessoalmente ofendido a um comentário de caráter geral está, na verdade, vestindo a carapuça. As corporações desprezam soberanamente a opinião da sociedade. Sua retórica da desinformação se põe em campo para intimidar quem as critica. Buscam manter uma interação desfocada da opinião pública para não chamar a atenção para a amarga situação do Judiciário, que às vezes deixa o cidadão mais pobre à espera, a vida inteira, de Justiça. O que importa é manter o espírito de corpo e proclamar a rotina da conivência entre os detentores da verdade. E garantir o princípio de que a sociedade, através do controle externo, não pode tocar na sacralidade dos juízes.

É exatamente este véu de impunidade, mantido por um teatro de “investigação de conduta”, que atrai os criminosos para a atividade. Nada disso é muito diferente da política, com este mesmo vício de “classe”. O crítico é sempre aquele que usa a língua fora do poder. Mas quando ela vem da boca de uma destemida juíza traz uma esperança. Sinaliza a possibilidade concreta de mudança e melhoria na gestão das instituições. Livra-se da emboscada do silêncio e eleva o tom contra o movimento corporativo, que quer “cortar as asas” e os poderes de investigação e julgamento contra juízes ineptos ou envolvidos em corrupção. Calmon não se sujeita. Exige respeito e endurece a crítica contra os transgressores e negociadores de sentença.

É logo atacada por vozes “autorizadas” e posta diante do seu “erro”: a ousadia de imputar culpa a colegas, de querer lavar a roupa suja ao sol da transparência e ousar desativar os mecanismos de desmoralização do Judiciário. A corregedora, com descortino põe-se do lado certo, e escolhe com sua atitude ajudar a sociedade a se aperfeiçoar. Diz que a sedimentação cultural da corrupção e a “intimidade indecente entre a cadeia e os poderosos estão acontecendo em razão de um esgarçamento ético muito grande. A sociedade caminhou para este grande abismo.

A linguagem moral e ética, (tornou-se) uma linguagem fraca. Chegamos a um estágio que ou partimos para uma posição de radicalizar uma providência contra a corrupção ou nós não vamos sobreviver como nação civilizada”. Na entrevista que deu à Associação Paulista de Jornais (APJ), a corregedora abre a caixa-preta de muitas carreiras de sucesso. E afirma saber que “não é incomum um desembargador corrupto usar o juiz de primeira instância como escudo para suas ações. Ele telefona para o juiz e lhe pede uma liminar. Um habeas corpus, uma sentença. Os juízes que se sujeitam a isso são candidatos naturais a futuras promoções.

Os que se negam a fazer esse tipo de coisa, os corretos, ficam onde estão. O ideal seria que as promoções acontecessem por mérito. Hoje é a política que define o preenchimento de vagas nos tribunais superiores. Os piores magistrados terminam sendo os mais louvados. O ignorante, o despreparado, não cria problema com ninguém. Esse chegará ao topo do Judiciário”. Baiana de Salvador, a ministra Eliana Calmon não tem esperanças de poder investigar a Justiça de São Paulo, refratária à corregedoria nacional e onde estão 60% dos processos ajuizados no país: “Sabe que dia eu vou inspecionar São Paulo? No dia em que o sargento Garcia prender o Zorro.”

A lucidez desenganada do humor traduz a sentença de Rui Barbosa, seu conterrâneo ilustre: “De tanto ver triunfar as nulidades, de tanto ver crescer a injustiça, de tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, o homem chega a desanimar da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto.”

Paulo Delgado é sociólogo e foi deputado federal pelo PT-MG"

(Texto publicado no jornal O Globo, edição de 30/09/2011)

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Comissão da Verdade e o desafio da busca da reconciliação nacional

No artigo abaixo, o deputado federal Emiliano José (PT-BA) discorre sobre a importância dos trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, cuja criação foi aprovada na semana passada pela Câmara dos Deputados. No artigo intitulado Onde está Jorge?, publicado no jornal A Tarde, da Bahia, ele aborda o caso do engenheiro Jorge Leal Gonçalves Pereira, um dos desaparecidos durante o governo militar. "Quem sabe com a Comissão Nacional da Verdade consigamos responder à angustiante pergunta feita pela mãe do filho desaparecido: onde está Jorge?". Abaixo, a íntegra do artigo:

" As dores do mundo não devem ser esquecidas. Muitas delas, para que não se repitam. Como os assassinatos cometidos pela ditadura. Os desaparecimentos forçados de pessoas, jamais vistas. Ditadura, nunca mais. E lembro-me aqui de Jorge Leal Gonçalves Pereira, um dos desaparecidos políticos daquele período de terror e de sombras. Baiano, engenheiro eletricista, pai de quatro filhos, quando sumiu. E sumiu é modo de dizer, um triste modo de dizer. Assassinado e desaparecido.

Era um homem sereno, atencioso, cuidadoso com todos – isso me foi dito por Cleuza Zanetti esses dias, que com ele compartilhou vida militante na Ação Popular (AP), que também foi a organização revolucionária a que pertenci. Esses dias Jorge Leal foi bastante lembrado, em sessão na Assembléia Legislativa e em caminhada pela rua que leva o seu nome, no bairro da Massaranduba. Sorte que alguém tenha tido a idéia de homenageá-lo com nome de rua. Justa homenagem. Vereadores e vereadoras de Salvador deviam homenagear mais homens e mulheres mortos pela ditadura.

Trabalhava na Refinaria de Mataripe, em 1964. Preso em abril daquele ano, foi demitido. Passou, então, a trabalhar na Companhia de Eletricidade da Bahia – Coelba. Seu seqüestro ocorreu em outubro de 1970, na rua Conde do Bonfim, Tijuca, Rio de Janeiro, realizado por agentes do DOI-CODI do Rio de Janeiro. Imediatamente levado para o Batalhão de Polícia do Exército, foi acareado com Marco Antônio de Melo, que fora meu companheiro na direção da União Brasileira de Estudantes Secundaristas, no ano anterior. Nesse outubro, eu estava em Salvador, clandestino. Fui preso um mês depois.

Quem também o viu foi Cecília Coimbra, psicóloga, uma das fundadoras do Grupo Tortura Nunca Mais no Rio de Janeiro. Nunca mais foi visto. Sua mãe, Rosa Leal, que acalentava, como a maioria das mães, uma esperança grande no bom coração das pessoas, escreve em 1972 carta para Scyla Médici. Uma carta emocionante para qualquer um que a lesse, menos para a mulher do general Médici, o mais tenebroso dos ditadores do período militar.

“... E eu, como mãe e avó, venho lhe pedir para ter pena destas crianças que ainda tão pequenas estão privadas do seu amor e do seu carinho”, Rosa escrevia, ao falar do sumiço e da falta que o pai fazia aos quatro filhos, todos pequenos. “Lhe dirijo o pedido de uma mãe e avó à outra: onde está Jorge?”. Silêncio, nenhuma resposta, como sempre ocorria nesses casos. Antes, no final de 1971, o advogado de Jorge Leal conseguiu a suspensão da audiência de um processo na 1ª Auditoria da Aeronáutica, no Rio de Janeiro, que acusava 63 pessoas de pertenceram à AP. Argumento: Jorge Leal era dado como preso por companheiros de prisão e não fora apresentado. O I Exército, como de costume, continuou a negar o sequestro.

Revelações do médico Amílcar Lobo, que participou de sessões de tortura, cassado pelo Conselho Federal de Medicina por esse crime, revelou à revista IstoÉ, em 1987, que viu Jorge Leal no DOI-CODI do Rio de Janeiro. Um general, que não se identificou, confirmou também o assassinato de Jorge Leal à Folha de S. Paulo, em 1979. Evidências, portanto, não faltam. O corpo, no entanto, jamais foi entregue aos familiares. Nega-se um direito elementar, ancestral, de as pessoas enterrarem seus entes queridos.

Fico aqui pensando no sofrimento de toda a família, de suas irmãs, de seus filhos, todos os familiares. A sensação de uma perda inconclusa, a impossibilidade de fazer o luto de forma definitiva. São as feridas abertas da ditadura. Feridas que só vão cicatrizar quando toda a verdade vier à tona, quando pelo menos soubermos os nomes dos criminosos. Por isso creio que a instalação da Comissão Nacional da Verdade, que espero já tenha sido aprovada quando este artigo estiver sendo publicado, pode ser um excelente caminho para garantir o direito à memória e à verdade, para permitir uma verdadeira reconciliação nacional.

As interrogações são muitas, dúvidas imensas persistem. Quem sabe com a Comissão Nacional da Verdade consigamos responder à angustiante pergunta feita pela mãe do filho desaparecido: onde está Jorge?

(*)Emiliano José- Jornalista, escritor, deputado federal (PT/BA)
(Artigo publicado originalmente no jornal A Tarde, edição do dia 26/9/2011)