sexta-feira, 7 de junho de 2013

A BANALIDADE DE “NÃO SEJA MAU”

LEITURA ESSENCIAL

O texto abaixo,em tradução não oficial, é de Julian Assenge,  criador do WikiLeaks, publicado no New York Times de sexta-feira (02/06), trata do livro The new digital age, de Eric Schmidt e Jared Cohen.  Schmidt é o diretor-executivo do Google, e Cohen, ex-assessor de Condoleeza Rice e Hillary Clinton, é diretor de sua Divisão de Ideias.  Ambos, segundo Assange, criaram um novo idioma para o poder global dos Estados Unidos no século 21. De forma clara, anunciam que a sua empresa terá uma posição chave na consolidação do imperialismo tecnocrático norte-americano no mundo. “O texto é conciso, o estilo, coloquial — e o conteúdo, banal”, resume Assange.

O que preocupa Assange é outra coisa: a íntima associação entre o Google — nascido da ideia visionária e libertária de jovens do Vale do Silício — e o Departamento de Estado. Como registra o criador do WikiLeaks, os maiores elogios ao livro partiram dos falcões imperialistas, como Henry Kissinger, Tony Blair e Michael Hayden, ex-diretor da CIA.  Assange – conforme lembrou o jornalista Mauro Santayana - aponta que o livro dos dirigentes do Google repete os tabus e interesses do Departamento de Estado. Seus autores, conforme o criador do WikiLeaks, desdenham o avanço democrático na América Latina — obtido com o fim das oligarquias e a queda de alguns dirigentes submissos aos Estados Unidos — e se referem a seus líderes como “envelhecidos”.

 Julian Assenge* 

“A Nova Era Digital” é um surpreendentemente claro e provocativo protótipo para o imperialismo tecnocrático, de dois de seus principais feiticeiros, Eric Schmidt e Jared Cohen, que constroem um novo idioma para o poder global dos Estados Unidos no século XXI. Esse idioma reflete a cada vez mais próxima união entre o Departamento de Estado e o Vale do Silício, como personificado pelo Sr. Schmidt, o diretor executivo da Google, e o Sr. Cohen, um antigo conselheiro de Condoleezza Rice e Hillary Clinton que agora é diretor da Google Idéias.

Os autores se encontraram em Bagdá, ocupada em 2009, quando o livro foi concebido. Espreitando pelas ruínas, ambos se entusiasmaram com a tecnologia de consumo que estava transformando uma sociedade comprimida pela ocupação militar dos EUA. Eles decidiram que a indústria tecnológica poderia ser um poderoso agente da política externa norte-americana.

O livro propagandeia o papel da tecnologia em remodelar os povos e nações do mundo ao gosto do superpoder dominante, queiram eles ser remodelados ou não. A prosa é concisa, o argumento confiante e a sabedoria – banal. Mas este não é um livro feito para ser lido. É uma grande declaração planejada para gerar alianças.

 “A Nova Era Digital” é, além de qualquer coisa, uma tentativa do Google para se posicionar como o visionário geopolítico da América – aquela empresa que pode responder à pergunta “Onde a América deve ir?” Não surpreende que um número respeitável dos mais famosos cães de guerra mundiais foram convocados para dar seus selos de aprovação a este subterfúgio do “poder brando” ocidental. Os reconhecimentos dão prioridade para Henry Kissinger, que junto com Tony Blair e o antigo diretor da CIA Michael Hayden concederam elogios prévios para o livro.

No livro os autores tomam o fardo do nerd branco com alegria. Uma pitada liberal de bons negros, convenientes e hipotéticos, aparece: pescadoras congolesas, designers gráficos em Botswana, ativistas anticorrupção em São Salvador e pastores analfabetos no Serengueti são todos obedientemente invocados para demonstrar as propriedades progressivas dos telefones Google articulados na cadeia informacional do império do Ocidente.

Os autores oferecem uma versão profissionalmente banalizada do mundo do amanhã: os aparatos tecnológicos de décadas adiante são previstos como a serem bastante como o que temos hoje – só que mais estilosos. O “progresso” é gerado pela difusão inexorável da tecnologia de consumo americana sobre a superfície da Terra. Todos os dias já há uma ativação de um milhão ou mais de aparelhos móveis que funcionam via Google. A empresa irá se introduzir – e por consequência o governo dos Estados Unidos – entre as comunicações de cada ser humano que não está na China (China malandra).

Mercadorias apenas se tornam mais atraentes; jovens profissionais urbanos dormem, trabalham e fazem compras com mais facilidade e conforto; democracia é diabolicamente subvertida por tecnologias de vigilância, e o controle é entusiasticamente renomeado como “participação”; e nossa presente ordem mundial de dominação sistematizada, intimidação e opressão continua, encoberta, ilesa ou apenas suavemente perturbada.

Os autores são duros quanto ao triunfo dos Egípcios em 2011. Eles dispensaram a intimidada juventude egípcia, afirmando que “a confusão nos protestos e a arrogância dos jovens é universal”. Grupos que são inspirados virtualmente levam a uma revolução “fácil de começar”, mas “difícil de acabar”. Por causa da abstenção de líderes fortes, o resultado, o Sr. Kissinger diz aos autores, são coalizões de governantes que derrocam em autocracias. Eles dizem que “não haverá mais primaveras” (mas a China está nessa corrente).

Os autores fantasiam sobre o futuro dos grupos revolucionários  com “bons recursos”. Um novo “grupo de consultores” irá “usar dados para construir e harmonizar uma figura política”.

No discurso “dele” (o futuro não é tão diferente) a fala e a escrita serão alimentadas “através de complexos recursos de extração e grupos de software de análise de tendências” enquanto “mapeando o funcionamento cerebral,” e outros “diagnósticos sofisticados” serão  usados  para “avaliar os pontos fracos do seu repertório político”.

O livro espelha tabus institucionais e obsessões do Departamento de Estado. Isso evita uma crítica significativa de Israel e da Arábia Saudita. Ele pretende, extraordinariamente, que o movimento de soberania latino-americano, que libertou tantos de ditaduras e plutocracias apoiadas pelos EUA nos últimos 30 anos, nunca aconteceu. Referindo-se à região como o lugar dos “líderes envelhecidos”, o livro não consegue ver a América Latina por Cuba. E, claro, o livro aborda teatralmente os favoritos bichos papões de Washington: a Coréia do Norte e o Irã.

Google, que começou como uma expressão da cultura californiana de estudantes de graduação - uma cultura decente, humana e divertida — se vendeu, ao encontrar o mundo grande e mau, para os elementos tradicionais de poder em Washington, do Departamento de Estado à Agência de Segurança Nacional.

 Apesar de representar uma fração infinitesimal das mortes violentas no mundo, o terrorismo é uma marca favorita nos círculos políticos dos Estados Unidos. Este é um fetiche que também deve ser atendido, e então "O Futuro do Terrorismo" recebe mais um capítulo. O futuro do terrorismo, aprendemos, é o “cyberterrorismo”. A sessão de indulgente alarmismo segue, incluindo um cenário de filme-catástrofe, de tirar o fôlego, onde “cyberterroristas” assumem o controle do sistema americano de controle de tráfego aéreo, colidem aviões em edifícios, fecham as redes de energia e fazem lançamento de armas nucleares. Os autores então atacam ativistas que se engajam e práticas digitais com a mesma arma.

Eu tenho uma perspectiva muito diferente. O avanço da tecnologia da informação sintetizada pelo Google anuncia a morte da privacidade para a maioria das pessoas e muda o mundo na direção do autoritarismo. Esta é a principal tese do meu livro, “Cypherpunks.”. Mas enquanto o Sr. Schmidt e o Sr. Cohen nos dizem que a morte da privacidade vai ajudar os governos nas "autocracias repressivas" em "alvejar os seus cidadãos", eles também dizem que os governos nas democracias “abertas” irão vê-la como “um dom” que lhes permite “responder melhor aos cidadãos e às preocupações dos clientes”. Na realidade, a invasão da privacidade individual no Ocidente e a centralização de poder fazem dos abusos algo inevitável, movendo as “boas” sociedades para perto das "ruins".

A seção sobre "autocracias repressivas" descreve, com desaprovação, várias medidas de vigilância repressivas: legislação que insere porta dos fundos em softwares para permitir espionar os cidadãos; o monitoramento das redes sociais e coleta de informações sobre populações inteiras. Tudo isso já está em uso difundido nos Estados Unidos. Na verdade, algumas dessas medidas - como o incentivo para exigir que cada perfil das redes sociais esteja ligado ao nome real - foram liderados pelo próprio Google.

Está tudo escrito nas paredes, mas os autores não conseguem ver isso.  Eles emprestam as ideias de William Dobson de que os meios de comunicação, em uma autocracia, “permitem uma imprensa de oposição, na medida em que os opositores do regime entendem onde os limites tácitos estão.” Entretanto, essas tendências estão começando a surgir nos Estados Unidos. Ninguém duvida dos efeitos surpreendentes das investigações sobre a Associated Press e James Rosen,  da Fox. Mas houve pouca análise no papel do Google no cumprimento da intimação de Rosen. Tenho experiência pessoal sobre essas tendências.

O Departamento de Justiça admitiu em março que estava no terceiro ano de investigação criminal do WikiLeaks. Testemunhos em tribunal afirmaram que os alvos incluem "os fundadores, proprietários ou gerentes de WikiLeaks". Uma suposta fonte, Bradley Manning, irá enfrentar um julgamento de 12 semanas a partir de amanhã, com 24 testemunhas de acusação que se espera deporem em segredo.

O livro é um trabalho “maléfico” que nem o autor tem a linguagem para ver, muito menos para expressar, o titânico mal centralizador que eles estão construindo. “O que Lockheed Martin foi para o século XX”, nos dizem, “empresas de tecnologia e cybersegurança serão para o XXI.” Sem sequer compreender como, eles atualizaram e consistentemente implementaram a profecia de George Orwell. Se você quer uma visão do futuro, imagine Óculos Google apoiados por Washington enlaçados em faces humanas disponíveis – para sempre. Guardiões do culto da cultura de tecnologia de consumo irão encontrar pouca coisa a inspirá-los aqui, não que eles alguma vez pareçam precisar. Mas isto é leitura essencial para qualquer um pego na luta pelo futuro, tendo em mente um imperativo simples: Conheça seu inimigo.

http://www.nytimes.com/2013/06/02/opinion/sunday/the-banality-of-googles-dont-be-evil.html?_r=0

Julian Assenge* é criador do WikiLeaks (texto publicado no New York Times em 02/06/13

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